Dificuldade de equalização do ouvido em mergulho sob tecto real
Texto: Pedro Ivo Arriegas
Publicado em: Planeta d’Água Nº3 (Maio – Junho de 2007)
A não equalização do ouvido sob tecto real é uma questão raramente abordada por quem não executa este tipo de imersão. Na verdade para a generalidade dos mergulhadores a não equalização não traz problemas de maior, para além do incómodo de abortar o mergulho.
Já sob tecto, quando é vital descer para que possa ser alcançada a saída de uma gruta ou de um naufrágio no qual se fez uma penetração, o problema é bastante mais complexo. Já a opção, por dolorosa que seja, essa é simples: perfurar um tímpano e conseguir sair versus esperar que o gás se esgote e morrer afogado.
Acontece é que o incidente não acaba necessariamente aqui, pois uma perfuração do tímpano para além da dor que lhe é inerente, constitui um brutal choque térmico e afecta tremendamente o equilíbrio do mergulhador, o que coloca ainda adicionais questões de segurança ligadas quer ao controle de flutuabilidade, quer quanto à orientação.
Em 1999 passei por situação pouco amigável. A imersão, integrada no projecto da topografia do labirinto da entrada do Almonda, já ia longa (cerca de hora e meia) e já se fazia sentir um pouco de frio, embora nada de mais. A ideia de ainda conseguir equipar e topografar uma galeria lateral recentemente detectada parecia atraente.
Após uma primeira amarração perto da linha primária, fui penetrando na pequena galeria, continuando a colocar fio e impondo-lhe fraccionamentos. À minha frente alguns bocados de fio velho, prova de imersões passadas, atravessavam a galeria ou pairavam na água límpida. Se possível recolheria esses bocados de fio no regresso.
Por mais cuidado que fosse posto em não perturbar o sedimento, o impacto das bolhas de exaustão fazia precipitar do tecto da galeria restos de argila aí depositada, que iam turvando a água atrás de mim. Apercebi-me rapidamente que teria que executar o percurso de retorno em condições de visibilidade zero, o que aliás não traria problemas de maior, desde que não ocorressem prisões no tal fio velho. Sabia já também que com estas condições a ideia de topografar a galeria no regresso estava definitivamente posta de parte e teria de ficar para outra oportunidade.
Lá acabei por atingir o fim da galeria, dei uma última olhadela aos manómetros e restantes instrumentos e calmamente iniciei o regresso. Independentemente do posicionamento das iluminações, o reflexo destas na matéria em suspensão era de tal forma intenso, que se tornava muito mais confortável fechar os olhos e deixar-me guiar pelo tacto e pelo fio guia.
Em determinada ponto a galeria afundava e era essencial compensar. Tentei e nada. O frio, a princípio imperceptível, tinha levado à produção de mucosidades que me bloqueavam a trompa de Eustáquio do ouvido esquerdo. Tentei outra vez a manobra de Valsalva e ainda outra e nada. Mastiguei, degluti, mexi o mais que pude o maxilar inferior, etc., etc. e nada. Resolvi então inverter a deslocação, dirigindo-me outra vez, de forma tão compassada quanto possível, para o final da galeria, para reduzir de novo a profundidade e assim facilitar a equalização. Nesse momento era também preciso gerir a urgência devida ao consumo da reserva de gás face à necessidade de progredir lentamente por causa da ausência de visibilidade.
Sabendo que, quer conseguisse ou não compensar, teria de descer para conseguir sair do sistema, equacionava já por essa altura quando é que iria mesmo ter de me decidir a nadar para a parte mais funda da galeria em direcção à saída. E no entretanto, nada de compensar e o tempo a correr!
Comecei então a deslocar-me, descendo suavemente, preparando-me mentalmente para as dores que se seguem ao desconforto inicial, quando após uma Valsalva forte, dei pela trompa desbloquear e um forte estrondo no ouvido esquerdo. Seguiu-se uma vertigem, no início forte, depois controlável e alguma dor que me acompanharam durante o lento regresso à superfície. Sorte minha que este não tivesse sido perturbado por algum fio velho ou por qualquer embate contra a parede. Como foi aí tão acolhedora a protecção do capacete!
Saí da água, ainda algo tonto e passei o resto do dia com o ouvido dorido, tapado e com tinnitus (zumbido persistente). Nos dias que se seguiram, e isto após consultas, TAC e audiogramas, acabou por se verificar que tinha ocorrido afectação do ouvido interno esquerdo devido à violência da manobra de Valsalva. Com o correr dos meses os sintomas, nomeadamente o tinnitus e o desconforto perante sons mais fortes, foram-se esbatendo e a sequela limitou-se a uma ténue deficiência na audição das mais altas frequências do espectro audível, agora já praticamente imperceptível.
Presentemente, sem que as consequências tenham sido de maior e já com o distanciamento possível, é fácil reconhecer quanto enriquecedor em termos de auto-conhecimento foi o incidente.